RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Na primeira apresentação carioca da turnê “Que tal um samba?”, no Vivo Rio, Chico Buarque, ao lado da artista convidada Mônica Salmaso, reafirmou, de maneira ainda mais convicta, o que o show anunciava desde a estreia em João Pessoa, em setembro de 2022: uma celebração ao que se aponta ali como um “bom tempo” vindouro, “depois de tanta mutreta”, “tanta cascata”, “tanta demência” e “uma dor filha da puta”.
Em seu repertório e cenário, o espetáculo observa a grandeza da existência brasileira: do amor em suas mil formas, do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, do meio ambiente, da cultura e a da arte, e mesmo das contradições que sustentam muito disso. “Diversos açoites/ Doces lundus”, como ele canta em “Bancarrota Blues”.
Nesse contexto de “desafogo” e “devaneio”, Chico lembrou Gal Costa e Miúcha, -irmã do artista, morta em 2018– e espetou Paulo Guedes e a juíza Monica Ribeiro Teixeira, que recentemente questionou que ele fosse autor de “Roda viva”. E, com Salmaso, cantou com vontade o verso-exortação de “Maninha”: “Um dia ele vai embora, maninha/ Para nunca mais voltar”.
O show foi o primeiro da turnê depois da posse de Luiz Inácio Lula da Sila, do PT, de quem Chico é um apoiador histórico. O roteiro deixa evidente a afinidade entre o país defendido pelo presidente e o exposto nas canções do compositor. A noite começou às 21h57, com Salmaso no palco, cantando sozinha a infanto-revolucionária “Todos Juntos”, do repertório de “Saltimbancos”. “Todos juntos somos fortes/ Somos flecha e somos arco/ Todos nós no mesmo barco/ Não há nada pra temer”, diz a letra. O princípio da democracia, enfim.
Antes de Chico subir ao palco, Salmaso passeia por canções que tratam do amor entre duas mulheres, com fim trágico devido ao preconceito, caso de “Mar e Lua”, ou que visam das ameaças ao meio ambiente ou, pela metáfora, aos que trazem beleza ao mundo, com “Passaredo”. Com “Beatriz”, Salmaso celebrou o artista. A cantora também anuncia: “O pescador me confirmou/ Que o passarinho lhe cantou/ Que vem aí bom tempo”, diz a canção “Bom Tempo”.
Em “Paratodos”, louvor à música popular brasileira, Chico finalmente apareceu no palco. Entrou para cantar: “Vou na estrada muitos anos/ Sou um artista brasileiro”.
A canção é senha para o cruzamento dessa trajetória pessoal com a história mais larga do país. Chico é o “cantor atormentado/ Herdeiro sarará” que testemunha a violência que corta de várias formas o processo de miscigenação brasileiro – como retratado em “Sinhá”, parceria sua com João Bosco.
É, aos 78 anos, um “velho Francisco” de vivências acumuladas, como o personagem de sua canção. Vai fundo no mais pessoal, na paternidade, ao cantar as filhas em “As Minhas Meninas”, para logo depois, com o auxílio preciso e belo de Salmaso, expor outra experiência, na maternidade amarga de “Uma Canção Desnaturada”. Seu Rio de Janeiro é lembrado em “Dois Irmãos” e “Futuros Amantes”, em sequência, apontando para o eterno além da cidade. A capital aparece também como triste cenário do horror racista de “As Caravanas”.
A banda que acompanha Chico e Salmaso é formada por Luiz Claudio Ramos, responsável pelos arranjos, guitarra e violão, João Rebouças, no piano, Jorge Helder, no baixo acústico e elétrico, Jurim Moreira, na bateria, Chico Batera, na percussão, Bia Paes Leme, nos teclados e vocais, e Marcelo Bernardes nos sopros.
Nos arranjos, que têm como referência os originais, a busca pela beleza é o efeito expressivo maior –ora explorando toda a banda, ora em formações menores, como “Beatriz”, feita em piano e violão. Há espaço para outras texturas sonoras no tecido do show. Bia assume o triângulo de “Tipo Um Baião” e Marcelo Bernardes se posta ao lado de Chico Batera, ambos tocando atabaques, em “Sinhá” -com forte efeito sonoro e cênico.
Salmaso usa a voz com o rigor e expressividade musical de instrumentista -seu diálogo com os sopros de Marcelo Bernardes em “Passaredo” atesta isso. O repertório aproveita inteligentemente músicas feitas para duas vozes, na qual a cantora rende tanto no terreno do lirismo, caso de “Imagina”, de Chico com Tom Jobim, ou “Sem fantasia”, como no da malícia, em “Biscate”.
Cenicamente, o show tem a mesma frequência emocional, política e filosófica das canções. Com duas paredes de canhões nas laterais, a iluminação de Maneco Quinderé, como os arranjos instrumentais, prende-se à tarefa de realçar a beleza da música que se faz ali. O cenário de Daniela Thomas apresenta projeções de fotos de 19 fotógrafos brasileiros da fauna, da flora e, sobretudo do povo brasileiro em situações de festa e luta. Uma continuação da carga simbólica da diversidade que subiu a rampa do Planalto no dia 1º de janeiro.
O compositor fez uma homenagem a Gal Costa com “Mil Perdões”, canção sua gravada pela baiana em 1983. Enquanto cantava, uma foto da cantora era projetada ao fundo do cenário. A plateia reagiu com palmas assim que viu a imagem, e aplaudiu efusivamente ao fim da música.
O Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, também foi lembrado, em “Assentamento”, que Chico compôs na década de 1990 para o movimento. A canção tem versos como: “Quando eu morrer/ Cansado de guerra/ Morro de bem/ Com a minha terra/ Cana, caqui/ Inhame, abóbora/ Onde só vento se semeava outrora”.
Na reta final do espetáculo, Chico fez piada com a recente sentença da juíza que questionou que “Roda Viva” fosse uma canção sua. O compositor pedia na Justiça que Eduardo Bolsonaro removesse uma postagem na qual usava a música, além de pagar uma indenização por danos morais.
“Com instrumentistas desse naipe eu tenho que caprichar é muito meu violãozinho”, disse Chico, logo depois de apresentar a banda sobre a base instrumental de “Bancarrota Blues”. Ele continuou: “Posso ratear, esquecer uma parte de uma letra. Pensei em instalar um teleprompter. Mas aí podem dizer, se eu não sei as letras, não sei tocar, que eu não sou o autor: ‘Prova que é sua?'”. A plateia riu.
Em seguida, lembrou a história que circulou nas redes de direita dizendo que ele comprava suas músicas. Depois de afirmar que não admitia a acusação de que comprava músicas, cantou “mas posso vender”, retomando a letra de “Bancarrota Blues”.
Ao fim da canção, que tem como mote exatamente o verso “mas posso vender”, que se repete ao longo de toda a letra, ele arrematou: “Essa também não é minha. É do Paulo Guedes”.
Depois de se despedirem com “Que Tal Um Samba?”, canção que dá título ao show e resume sua alma solar, Chico e Salmaso voltaram ao palco para o bis sob o coro da plateia de “Olê, olê, olê, olá, Lula, Lula”. Chico fez o L com os dedos e dedicou “Maninha”, que cantaria a seguir, à sua irmã Miúcha: “que se estivesse aqui estaria fazendo o L também”.
“João e Maria” encerrou o show, em mais um belo dueto de Salmaso e Chico. Uma canção de caráter infantil, como a “Todos Juntos” da abertura. O futuro, portanto, como princípio e fim do show. Um futuro do qual as canções do Chico certamente não darão conta, mas que não se pode dar ao luxo de dispensá-las. Sobretudo porque seguem carregando mais perguntas do que respostas. “Que Tal Um Samba?”, por exemplo.